Destino, destinatário: histórias em cartas (2016)
São Paulo, segunda década do século XXI
Estimado leitor,
Espero que esta carta o encontre em paz e em estado de esperança.
Não preciso lhe dizer que cartas andam meio fora de moda. Algo já antiquado, exceto no Natal, quando muitos se lembram de escrever para um tal Papai Noel, que lá da Lapônia ainda não tem e-mail, redes sociais ou algo assim. Pelo menos é o que se pensa aqui no Brasil.
É claro que escrever uma carta exige acesso ao próprio coração, à própria alma. É preciso que existam também pessoas morando no coração e na alma, cuja presença nos emociona, nos afeta em qualquer sentido. O que liga as palavras à mão é a linha da emoção.
Outro elemento importante: sempre há muito a dizer para quem mora em nós e está distante de algum modo. Por isso, muitas letras são borradas de lágrimas, coloridas de surpresas.
Não se pode ter pressa. Devagar temos a garantia de que o que está escrito é exatamente o que queremos dizer. Fazemos quantos rascunhos achamos necessários. Algumas vezes os rascunhos são carregados de desabafos. Então paramos, lemos e pensamos: é isso mesmo que quero dizer? Essa é a melhor forma de dizer?
Embora existam cartas digitadas e, quem sabe, ainda datilografadas, as escritas à mão são mesmo as que mais gostamos de receber. Quando nos deparamos com um envelope, com nosso nome escrito em uma letra muito familiar, a respiração se acelera por alegria, surpresa ou luto. Quase sentimos a densidade e o perfume do remetente em nossas mãos. […]
Memórias.com/ partilhadas: vida, laços, pontos cruzados (2013)
BANDIDO, HERÓI, VÍTIMA
Uma cena constrangedora, cruel. Meu primeiro contato com o peso do preconceito, da discriminação, da dominação sobre os mais frágeis. Em nosso bairro, na zona leste, por essa época as ruas eram tranquilas. Porém, começaram a desaparecer roupas nos varais das casas. Uma blusa aqui, uma calça ali.
Um dia, vejo o suposto ladrão passar em frente ao portão de casa. Um menino negro, dez anos, com uma calça muito larga, arrastado por um homem forte e alto. Ele chorava, suas calças caíam a todo momento, deixando-o totalmente nu; ele sequer tinha cuecas. Um triste desfile da intolerância e indignidade humana rua abaixo.
Desejei que não fosse o menino. Talvez o varal fosse muito alto? Ainda mesmo que fosse o autor dos furtos, fiquei ali pensando. Ele teria mãe? Tão magro, teria se alimentado? As pessoas aplaudiam, sentindo-se vingadas por suas preciosas peças de roupa perdidas.
Quem era o herói, quem era o bandido? O que vi foi apenas um agressor grande e forte e uma vítima frágil, triste, humilhada. Eu era criança, talvez por isso a cena tenha me chocado; eu e o menino nos olhamos. Ele baixou os olhos.
Clave de luz: sons da vida (2014)
CÉLULAS?
Decifram códigos sutis.
Por secretos labirintos
carregam minha raiz.
Definem até o que sinto:
fome, saciedade, dor
arrepio, força ou calor.
Como nós, se enlouquecem
viram o jogo, arrasadoras
se rebelam, não obedecem,
incontroláveis, destruidoras
Quem comanda tal usina
que trabalha em sincronia?
Algum ente lhes ensina
tamanha sabedoria?
Seres simples, dirão.
É química e não mistério.
conquista da evolução,
a partir de algum minério
Algumas vezes reflito
Poderão ter pensamento?
Seria meu corpo, seu infinito,
Muitos anos, um momento?
Ah! Então delas serei Deus.
Mas se quiserem Me buscar
Por algum instante que seja,
Deixarão de trabalhar
Ficarei fraca e sem defesa.
E ao encontrarem Deus
Já estarão condenadas
Pois assim desordenadas,
Morrem elas, morre Eu.
E no caos clamarão: HÁ DEUS!
ADEUS…
Que lindo….parabéns. Tudo Cris-escrita…